Durante muito tempo, eu e boa parte das pessoas com quem fui criada, acreditávamos que o mundo era exatamente da forma como nos ensinavam as figuras “inteligentes” da nossa época, as que tinham voz, lugar de fala e legitimidade reconhecidas. E esse mundo era pequeno, com uma única perspectiva, sem grandes complexidades, macho e branco. Quem nasceu pobre, mulher, negra ou indígena não tinha sonhos. Apenas obrigações. A não ser que a pessoa tivesse um grande dom, uma sorte tremenda ou uma determinação inabalável beirando o sacrifício, ela jamais mudaria sua sina de servir e se ajeitar com os poucos privilegiados que nos cercavam.
Eu não sabia o que era, mas carregava em mim um medo enorme de que nada mudasse até eu ficar adulta. Tinha medo do meu futuro, receio das coisas que estavam sendo apontadas para o meu destino, ficava apavorada com os planos que aguardavam por mim na beira da estrada. Mas secretamente, na minha mente de criança, eu acreditava que existia algo que ninguém estava vendo, uma saída para não ficar devendo nada a Deus sem me tornar serva do diabo.
E torcia para que alguma coisa mágica acontecesse e eu pudesse ser salva do meu “destino” pré-estabelecido. Afinal, minha família era pobre, eu era mulher vestindo a mistura de três raças no corpo, nascida na zona rural de um Vale relegado aos discursos de miséria e à estatística da fome. E no mais, ainda tinha uma sociedade ocupada da minha virgindade e um Deus punitivo e intolerante que vigiava até meus pensamentos. Eu estava condenada pelo meu sexo e marcada pelas minhas origens. Só mais tarde entendi que eu não estava só. Existia outras tantas milhões de pessoas que, como eu, iam sendo empurradas à opções ruins porque nasceram negras, ou periféricas, ou das raízes dos povos originários desse Brasil.
Não podia existir só esse discurso em um planeta tão grande. E então comecei a ver pessoas negras ocupando lugares onde nunca tinha visto antes, com tanta certeza dos seus direitos e com palavras tão seguras de si que despertei. De onde eu vinha os lugares tinham ocupantes brancos, negros e indígenas eram submissos aos caprichos de uma pequena população abastecida pelos privilégios da cor e da herança. Foi então que conheci outras maneiras de se viver nesse mundo, mas que, de algum modo, foram escondidas por estórias escritas em livros e por leis que eu não entendia exatamente como e por quem foram criadas. Tem tantas coisas a serem contadas. Tantos mundos que já existiram e outros que ainda existem. E meus avozinhos já tinham ouvido falar de outras terras e outras épocas em que viver era bonito e generoso, mas eram dois caboclos retirantes do Vale do Mucuri, analfabetos, agricultores com nove filhos, não eram considerados sábios. Mas eles sabiam histórias dos tempos de seres coloridos, rezas poderosas e ervas curativas. E eu, apesar de volta e meia ser questionada sobre o meu lugar, nem retinta o bastante para os “outdoors black star”, nem branca o suficiente para transitar despreocupadamente no shopping, nem indígena com pureza e parentes reconhecidos pela FUNAI. Eu, uma mistura de tudo que há nessa terra, me senti negra. Passando pelas mesmas misérias, vivendo as mesmas ameaças, sendo chicoteada pelos mesmos feitores. Era essa consciência que me tomava na trajetória da minha vida . Foi ouvindo as narrativas das culturas africanas que pude olhar a minha volta e me ver em tantos rostos e inserida onde eu quisesse estar. Porque esse mundo também é meu. E como parte de tudo, eu não autorizo criar leis mesquinhas em meu nome, nem agir com crueldade com coisa nenhuma, ainda mais selecionar quem pode gozar da terra e quem tem que lutar por um lugar ao sol.
Novembro Negro é um momento de todas e todes que tem algo a dizer e cuja expressão não foi escutada. O elo que preservo em mim nunca se perdeu ou se perderá porque para onde quer que eu olhe tem gente lutando e ousando quebrar as correntes da hegemonia instalada no inconsciente das sociedades e na branquitude das instituições. Eu boto muita fé no chão que piso e por onde passaram minhas ancestrais. Eu acredito em um amanhã onde o jovem negro não tenha sua dignidade e sua integridade violada e em que as autoridades possam cumprir seu papel de proteger e servir à toda população por igual. Eu vejo um mundo onde viver para uma mulher seja um prazer e não um desafio. E o que aguardo é a ampliação das mesmas oportunidades para todas e para todos e torço para que uma consciência negra atinja o modo de pensar e a visão de mundo da humanidade.
A consciência de quem sou e de tudo que posso ser produziu um ser humano que acredita na riqueza das diferenças e na beleza da diversidade. Esse é o elo das nossas raízes e a estrada para uma humanidade bem desenvolvida e aproveitada. Eu olho para o horizonte com os olhos coloridos, ando com a força da negritude pulsando em minhas veias e com o coração dos povos indígenas cravado nessa terra. As raízes que me sustentam desenham minha brasilidade e abraçam minha fé em todo o meu povo e nas mil histórias que esse momento me permite ouvir e recontar. E a Casa Cultural Dona Antônia me possibilita viver e fortalecer as coisas todas nas quais acredito, porque cuidar das pessoas não é só um propósito, mas também um meio de tornar outros mundos possíveis, contando e cantando com tudo que a NOSSA ANCESTRALIDADE nos deixou e de olho no melhor que o nosso presente oportuniza. São cenários e vivências da negritude que o Estudos, Conexões e Origens Afrobrasileiras (ECOA) vem retratando durante o ano todo, com os encontros acontecendo na UNA Betim e na Casa Dona Antônia.
Venha nos conhecer porque #AquiCabeTodoMundo e aqui tem muitas e muitas histórias e conhecimentos contados de muitas maneiras diferentes e com muitas vozes. Nesse mês, com a consciência sempre negra, estamos com depoimentos e coisas muitos especiais para todes.
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